sábado, 27 de fevereiro de 2010

Um conto



ANJOS DO CIRCO


claudia helena villela de andrade

Chico Bala era artista de circo. Desde pequeno viajava nas caravanas do Circo Manolo. Circo de quinta categoria que se apresentava pelo interior. Ele fazia de tudo. Vestia-se de macaco para assustar a criançada, balançava no trapézio, ajudava o palhaço, engolia fogo, executava saltos mortais nas motos voadoras e equilibrava-se no fio de aço. Era o alvo do campeão de tiros e servia de bala de canhão, por isso tinha o apelido.
Nos intervalos das apresentações, vendia refrigerante e pipoca na platéia, também fazia a limpeza no final das sessões. Qualquer papel era bem executado por ele, braço direito do seu Manolo. Quase sempre era o artista principal.
Um dia, na hora da limpeza da platéia, Chico viu uma criança ainda miúda entre as cadeiras especiais. Chorava de fome a coitada. Pegou o bebê nos braços e o levou para seu trailer. Era um menino branquinho, de olhos azuis, que deveria ter dez ou onze meses, pois já ensaiava andar. A bailarina o socorreu com mamadeira e leite. Cortaram pedaços de lençóis e fizeram fraldas. Chico ficou quase toda a madrugada olhando o nenê dormindo e milhões de perguntas passaram por sua cabeça. Quem seria esse ser? Quem teria a coragem de abandoná-lo assim? Qual a sua idade certa? O que faria com aquela criança?
No dia seguinte, seu Manolo pediu ao Chico para ir à polícia entregar o menino, mas Chico não foi. Ficou adiando, enrolando, até que o circo levantou acampamento daquela cidade e foi embora para outras paragens. O menino foi junto. Todo mundo dizia que Chico estava sem juízo. Que não conseguiria criar uma criança sozinho. Que a polícia podia prendê-lo por seqüestro. Todas essas coisas que falam, mas que, nesses casos, dificilmente acontecem. Chico teimou e ficou com o menino, sem licença de juiz, sem papel, sem coisa nenhuma. Na pura coragem e cara-de-pau.
Chico batizou o menino com o nome de Francisco Filho. Seu Manolo e a bailarina foram os padrinhos. O menino Chiquinho, nesta época, já dava gargalhada e batia palminhas, o que fez Chico Bala escolher um dia para o seu aniversário de um ano. Coincidentemente estava bem perto de quatro de outubro. Dia do Santo que carregava esse nome: São Francisco de Assis. E assim foi feito. Em uma festinha improvisada, o batismo e o aniversário foram comemorados com grande alegria.
Os anos se passaram e Chiquinho cresceu feliz e contente junto de seu pai adotivo. Não podia ir à escola, por conta das viagens do circo, mas Chico Bala ensinava o pouco que sabia. Letras, números, coisinhas assim. E muita religião. Chico Bala tinha Deus no coração.
No aniversário de 18 anos do rapaz, Chico fez um festão no picadeiro do circo. Todos os adolescentes da cidade em que estavam foram convidados. A arena virou uma boate. Luz negra, som, tudo que os adolescentes gostam hoje em dia. Comida e bebida à vontade.
O que ninguém podia imaginar era que uma tragédia chegaria embaixo daquela lona. Uma turma de jovens que havia bebido demais resolveu provocar outra turma de meninos menores. Alguém puxou um revólver e atirou. Todos correram, mas, no fundo da arena, Chico Bala ficou estendido no chão com uma bala cravada na sua espinha.
Chico Bala não morreu, porém ficou paraplégico. Chiquinho cuidava dele dia e noite, com muito amor. Amor maior do que muito filho verdadeiro tem pelo pai. Além dos cuidados com o doente, o rapaz ainda fazia todo o trabalho do pai no circo.
Depois de quase um ano, Chico Bala pôde, enfim, voltar a trabalhar. Em sua cadeira de rodas, vendia ingressos no começo das sessões e no intervalo passava com seu tabuleiro de balas e biscoitos. Continuou fazendo jus ao seu apelido, com o coração sempre bom e alegre, apenas com uma pequena modificação: agora, era Chico das Balas.
Dizem que os seres de circo são anjos especiais. Trazem a alegria e a pureza latentes. As tristezas ficam por conta da maquiagem do palhaço e das desilusões que ele tem. Quase sempre isso é verdade. O palhaço chora por coisas das quais nem sabe direito o porquê. Deve ser saudade do céu. De voar entre as nuvens. De colher amoras no campo. De pisar descalço na grama. De balançar em um galho de eucalipto. De tomar banho de rio pelado. De chupar manga sentado no pé. Sem temores, sem inesperados nem enganos. Saudade de rir por rir, com a alma livre. Por isso o palhaço traz a saudade no rosto em forma de lágrima vermelha por cima da pintura branca. No interior, o pessoal tem uma mania esquisita: quando tem alguma desilusão, diz que vai embora com o circo. Como se o circo fosse composto de seres tristes e sofridos. Não é nada disso. Na confusão da vida, os artistas de circo cultivam a força do espírito para que a paz e a alegria de viver debaixo da lona sejam capazes de contagiar os espectadores. Pode-se notar isso pelo estado de ânimo de qualquer vivente ao sair no final de uma sessão de circo. A alma sempre está alegre. Tudo sempre delicado e singelo. Do começo ao fim. Puro como os animais, as crianças, os anjos e os artistas.
Assim, todo dia de apresentação, lá está Chiquinho como apresentador, no lugar do Seu Manolo, dono do estabelecimento e seu padrinho. Com uma cartola preta na cabeça e seus lindos olhos azuis, ele grita na maior alegria:
— Respeitáaaaavel púuuuublico!
Imediatamente seus olhos se levantam para o alto da lona e ele agradece a Deus por ter caído do céu bem ali, entre as cadeiras especiais. Perto de Chico das Balas, seu pai.
De longe, com o tabuleiro de bala no colo, Chico das Balas observa orgulhoso o filho, grande artista de circo, com a mesma alegria de sempre. De todo o sempre.
Só podem ser anjos. Só podem...

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei o conto... muito bom!!! Muito bonito.

Beijos claudinha,

Fabio