segunda-feira, 22 de outubro de 2012


Uma criança, um nome

claudia helena villela de andrade

     Era uma vez um menino chamado “Era uma vez”.  Por que será que sua mãe lhe deu esse nome? Todo mundo perguntava e ele não compreendia. A mãe de Era uma vez, apenas dizia que era um lindo nome que ela escutou no rádio.
     Um dia, Era uma vez começou a se lembrar dos amigos da escola que também tinham nomes esquisitos como o seu: Micael, Maike, Ueliton, Diones, Dionatas, Tauã, Elvis Lennon, 1-2-3, 1-2-3-4, Maniluana, Bariane, Dayg Liry, Garcy Kelly,   e se perguntava sem parar, o porquê do escrivão do cartório deixar fazer tais registros? Permitiam que tantas crianças crescessem tristes, com vergonha do próprio nome! Tudo por preguiça de explicar a mãe ou ao pai, que isso não era nome que se desse a um pequenino. Tanto nome bonito, João, Carlos, Mônica...
     Carregar esse peso, não era tarefa tão fácil. Ele sabia disso e cada vez que alguém perguntava o seu nome, ficava morto de vergonha. Cochichava, falava bem baixinho, olhava para o chão, timidamente. O interlocutor sempre pedia para que ele repetisse, pois não havia entendido: — Fala mais alto, menino! 
    Como aquilo doía!
    Um nome pode trazer traumas e nem todo mundo tem dinheiro para pagar um advogado e trocar esse selo.
    Era uma vez era uma criança triste. Não conhecia nenhum xará daquele seu nome que a mãe escutou no rádio.
    Então, teve uma grande idéia: adotar outro nome, mesmo que só da boca para fora.  Chamaria-se Zev Amu Are, seu nome escrito ao contrário e diria para todo mundo que era seu nome em árabe.
   

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Um buraco sem fim




     UM BURACO SEM FIM

    claudia helena villela de andrade

    Primaverei pela primeira vez numa véspera da estação das flores, num vinte e dois de setembro, nem sei que ano. Foi um dia. Não. Não é nascimento, que sou de outubro do dia cinco.  É primaverar. Mais que isso. Desabrochar, brotar, germinar, aparecer, sangrar. Sair da meninice e ser mulher. Não é mais que nascer? É sim. É nascer duas vezes, pois aí se atina para vida e  se começa a notar que o coração bate por um bom  motivo. Quase sempre, nessa época, o coração bate por um par de calças bem marcadas com volume e  fogosidade. Feridas a gente ainda não tem. Só as dos joelhos manchados de mercúrio cromo por algum tombo de bicicleta ou as do canto do dedo da  unha roída. Mas as cascas dessas feridas começam a cair justo nesse momento. Só muito depois é que a gente vai dar conta de que essas feridas eram ótimas. Mas, isso é só muito depois. Caem e nascem outras mais dolorosas, demoradas na cicatrização. Feridas que partem pra cima da gente como uma pedrada, sem a menor comiseração. Rápido começo de vida. Chegam os tropeços, os enganos. Chegam as mentiras, as fantasias e os desejos. Impulsos  de botar o dedo na panela quente. Queimar, arder, queimar, não importa. O sentir é mais que toda a primavera junta. É toda estação florida. Cores, perfumes, calor e alguma chuva. A pele muda. Os pés só querem dançar e o corpo balança de um jeito assanhado, moleque, faceiro. Quem está de fora adivinha a intenção e a cara nem fica vermelha. A cara ainda acredita na vida e nunca olha pra baixo. Tempo bom! Ai, que saudade dói! O pensamento só se ocupava disso. Só isso. Primaverar em paz. Pensei que fosse durar para sempre. Pensei que a velocidade fosse coisa da  modernidade. No fundo a gente pensa tudo errado de tudo. E  tudo é um buraco sem fim. Nem sei se ainda existe primavera. Existe?

sábado, 6 de outubro de 2012





PROCURANDO UM TEMA

Cláudia Helena Villela de Andrade


Capitu sabia muito bem o que todo mundo não sabia direito. Que ela era gay. Bentinho desconfiou. Mas, a certeza absoluta só veio quando se revelou que ele não havia sido traído com um homem. Na verdade, seu rival era uma sapata disfarçada. Coitado do Machado. Virou no túmulo lá no São João Batista: “O que fizeram da minha Capitu? Já foi chamada de piranha, puta, salafrária, mas de sapata, isso é demais da conta. Não quero mais ser escritor nas próximas dez encarnações. Como um homem com o meu cavanhaque pode se encarar no espelho?”.

Um homem se estrebucha quando isso acontece. Ser traído pelo melhor amigo não dói tanto quanto ser trocado por um ser do mesmo sexo. Assim também se sentem as mulheres que pegam seus maridos com o amigo, o vizinho, “et caetera” e tal. O sujeito ali, de quatro, na posição em que Napoleão perdeu a guerra... Dizem. Deve doer mesmo. Lá e cá.

Mas não se assustem. Falei de Capitu porque me veio à mente essa personagem tão ambígua de Machado e o próprio escritor tão macho atrás dos seus bigodes. Perguntei-me como seria se isso fosse a verdade dos tempos que se foram. Hoje em dia, isso não teria o menor problema. Está tudo virado mesmo, pois a bunda é apenas mais uma parte do aparelho sexual humano. Mas Capitu gay? Isso venderia todas as edições nas ruas escuras, nos escondidos, nos prostíbulos, nas portas das cozinhas de todo o reino. Machado, rico ficaria. Imagina! Por que Machado não pensou nisso? E olha que o homossexualismo não é coisa nova. Sócrates bem sabia disso. E o que seria novidade no mundo de hoje? Big Brother, incestos, filho matando pai e mãe, safadezas políticas, drogas, Harry Potter, clones, guerras. O que seria novidade e venderia feito água? Nem sexo de  animal com homem é novidade. As revistas estão cheias de mulheres fazendo com cavalos e homens com ovelhas. Não existe mais novidade. Não temos mais nada de novo para contar.

Machado chega pra lá. Vou me deitar ao seu lado.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012



A VOZ DO MEU SILÊNCIO

cláudia helena villela de Andrade

A voz que me fala é breve.
Não me amanhece.
Não me alisa.
Não me beija a boca.
Vacila na adrenalina do trapezista e
na coragem  do domador.
Fareja esconderijo
em   sinagogas,  mesquitas e  igrejas.
Procura castigo, perdão e razão
nos sete pecados capitais.
Freqüenta terreiros, lugares suspeitos.
Aguarda vento Norte
que  chicoteia o corpo.
A voz que me fala também grita.
Mas eu me calo, para não me desarmonizar.
Não transbordar afeto,
não me fazer infeliz.
Às vezes, nem sabe que existo
porque ando com os pés no chão
para não despertá-la.
Para não reconhecer tons graves
e me perder em harmonias agudas que desconheço os ritmos
podendo, sem querer, virar hinos.
A voz que me fala me vicia.
Compassiva, me silencia.
Esvazia minha sementeira e colhe razões.
A voz que me fala arrepia.
Deseja minha flor, minha sabedoria.
Não rega.
Não fertiliza.
Não ara minha terra.
Não gira meus chacras.
Não me magnetiza.
Apenas deixa-me em transe.
A voz que me fala distancia-me das quimeras.
Não me sussurra.
Não lambe meu sereno.
Não me cobre corpo, nem me vela sono.
A voz que me fala só me faz escutar quando morre,
no silêncio da hora exata,
depois do eco, depois do suspiro, depois do alívio
da minha paixão satisfeita.
Mas o que ela me fala, mesmo na morte,
nem sempre  quero  escutar.
Porque o silêncio é minha voz, sempre.
Na vida.
Na morte.
Em qualquer lugar.

quarta-feira, 25 de julho de 2012


DA VINCI

cláudia helena villela de andrade 

Da Vinci desenhou
inventos,
 outros lapidaram.
 Era feliz nas pinceladas
de aprendiz.
Sorrira muitos sorrisos
para Mona Lisa ser Colgate.
Bobagem,
ele sabia o tamanho certo da alegria.

Da Vinci não quis ser muito.
Servir ao mundo já  bastava.
Mas o ar sempre dizia:
—Leonardo, inventa a Arte!

domingo, 13 de maio de 2012



A  nova era

Cláudia HelenaVillela de Andrade


Eu calipto
Tu caliptas
Nós caliptamos
 com o machado, por dólares.
Olho por olho, verde por verde.
.

domingo, 18 de março de 2012


A CHAVE DO TEMPO

Claudia Helena Villela de Andrade
A chave gira
e o tempo passa.
 
Permeia suave
à  espera.

O coração marola
e emana brisa
dissolvendo a vida
em nada.

sexta-feira, 16 de março de 2012

O RIO



O RIO 

 Cláudia Helena Villela de Andrade 


 H2O, 
 doce melancolia.
 A solidão deságua companhia.
 O rio é mistério, natureza de mim. 
 Mergulho imensidão 
profundezas obscuras.

domingo, 22 de janeiro de 2012


VIGÍLIA

Cláudia Helena Villela de Andrade




 Se eu não dormir?



Ultrapassar sem falha

A impaciência da insônia,

Das horas no vácuo,

Ouvindo o pêndulo do relógio da sala

E a luz da lua que não se mexe

No silêncio de Orion sem cauda,

Fixa, permanente.



Vou plantar sonhos na minha seara.

 Ceifar a noite decantada de madrugada,

Sem descanso, feito um rio de inverno que não seca,

Filete sem vida.

Insistente.


 Se eu não dormir?

O sabiá não cisca o grão na minha mão

Porque a trava do viveiro quebrou

E os pássaros migraram de mim...

Estão aqui e deixaram-me.

Voam sobre pastagens e

Perseguem os cantos de quem nunca morre.

Não adianta ter pássaros em gaiola.

 Se eu não acordar?

Meus olhos vão sangrar

De peso e de pedra.

Minhas mãos, em cruz,

Sem o próprio abraço.

Nem a terra há de querer

O resto sólido da minha alma.

Para sempre insepulta.






quinta-feira, 19 de janeiro de 2012



Te (a ) mores



Cláudia Helena Villela de Andrade

No jantar de ontem eu comi um gato.
Ele estava vivo e esperneava pela minha goela abaixo.
Quando só faltava entrar a cabeça,
ele miava, gritando feito um louco.
Eu sentia o cheiro do mijo dele.
(Mijo de gato é selvagem, forte, agourento.)
Ele urinava até escorrer pelas minhas pernas.

Meu avesso estava todo arranhado.
Eu sangrava. Ele miava dentro de mim.
Peludo, dava-me enjôo.
Asmático,  deixava-me sem ar.
Estúpido, dengoso, dissonante.

(Lua que canta fora do céu:
nobody, nobody.)

Gatos cantam sob a lua cheia
no silêncio do tempo.
Olhando a gente no olho
com amor e coragem.





Vício

Cláudia Helena  Villela de Andrade



Enriquecer aborrece-me,
porque a fartura faz preguiça
numa lengalenga de balanço,
num ritmo de dar gastura.

E o que desejo, passa depressa
em dias de muita precisão.
Mas passa sem desenvoltura
nas noites aperreadas. Solidão.
 
Pensando no quê mais precisar
se tudo tenho e não divido.
Só quero mesmo é juntar,
dinheiro, pão, egoísmo.
Amor é divino querer,
que, acho, não vou merecer.
Então, o que posso fazer?
Enriquecer, enriquecer.