UM BURACO SEM FIM
claudia helena villela de andrade
Primaverei pela primeira vez numa véspera da
estação das flores, num vinte e dois de setembro, nem sei que ano. Foi um
dia. Não. Não é nascimento, que sou de outubro do dia cinco. É
primaverar. Mais que isso. Desabrochar, brotar, germinar, aparecer, sangrar.
Sair da meninice e ser mulher. Não é mais que nascer? É sim. É nascer duas
vezes, pois aí se atina para vida e se começa a notar que o coração bate
por um bom motivo. Quase sempre, nessa época, o coração bate por um par
de calças bem marcadas com volume e fogosidade. Feridas a gente ainda não
tem. Só as dos joelhos manchados de mercúrio cromo por algum tombo de
bicicleta ou as do canto do dedo da unha roída. Mas as cascas dessas
feridas começam a cair justo nesse momento. Só muito depois é que a gente vai
dar conta de que essas feridas eram ótimas. Mas, isso é só muito depois. Caem e
nascem outras mais dolorosas, demoradas na cicatrização. Feridas que partem pra
cima da gente como uma pedrada, sem a menor comiseração. Rápido começo de vida.
Chegam os tropeços, os enganos. Chegam as mentiras, as fantasias e os desejos. Impulsos
de botar o dedo na panela quente.
Queimar, arder, queimar, não importa. O sentir é mais que toda a primavera
junta. É toda estação florida. Cores, perfumes, calor e alguma chuva. A pele
muda. Os pés só querem dançar e o corpo balança de um jeito assanhado,
moleque, faceiro. Quem está de fora adivinha a intenção e a cara nem fica
vermelha. A cara ainda acredita na vida e nunca olha pra baixo. Tempo
bom! Ai, que saudade dói! O pensamento só se ocupava disso. Só isso.
Primaverar em paz. Pensei que fosse durar para sempre. Pensei que a velocidade
fosse coisa da modernidade. No fundo a gente pensa tudo errado de tudo. E
tudo é um buraco sem fim. Nem sei se ainda existe primavera. Existe?
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